28/10/2025

Tese do enriquecimento indevido reduz indenizações de motociclistas atropelados

Um morador de Campinas (SP) foi atropelado em 28 de setembro de 2019. Por volta de 5h30 daquele dia, um sábado, ele foi atingido na traseira de sua motocicleta quando saía para trabalhar em um município vizinho.

colisão arremessou o motociclista no asfalto. Na queda, ele fraturou quatro vértebras da lombar e teve de se arrastar até o acostamento da rodovia para não ser atropelado, já que o motorista fugiu sem prestar socorro.

O condutor fazia manobras perigosas em zigue-zague e tinha “sinais visíveis de embriaguez”, segundo concluiu o Tribunal de Justiça de São Paulo.

O motociclista chegou a ficar imobilizado com colete, fez fisioterapia e teve gastos com medicamentos. À época, ele era auxiliar de almoxarifado e precisou ficar 15 meses parado, período em que contou com auxílio-doença.

A fuga do motorista não deu resultado porque ele e o passageiro, com quem esteve em uma casa noturna antes do acidente, foram reconhecidos por uma testemunha ocular e um socorrista. O motociclista processou o condutor e a mãe dele, dona do carro.

Nos autos

O motorista e o passageiro, que falou no processo como informante, negaram o atropelamento. Ambos disseram que o carro bateu numa van e que não tinham nada a ver com a moto.

O juízo de primeiro grau afirmou que as declarações “não eram dignas de fé, pois não apresentavam consistência”. Ele condenou os réus a pagar por danos morais, danos materiais e lucros cessantes, que são a renda que a vítima deixou de receber no período.

O que o motociclista não sabia era que as indenizações seriam reduzidas em segunda instância. O caso foi julgado pela 2ª Turma de Direito Privado do TJ-SP no último mês de setembro, seis anos depois do acidente.

Os desembargadores reconheceram todas as circunstâncias da colisão e mantiveram a condenação, mas derrubaram o valor da indenização para menos da metade. Segundo o colegiado, era preciso fazer o “decote da parte excedente” do pagamento (clique aqui para ler o acórdão).

O juízo de origem havia fixado as quantias de R$ 2.954 por danos materiais, para cobrir despesas médicas e com a moto; R$ 36.934,05 de lucros cessantes, pelos 15 meses de inatividade; e R$ 50 mil por danos morais.

A segunda instância manteve apenas o valor dos danos materiais. As outras duas indenizações recuaram para 40% do valor original: os lucros cessantes passaram para R$ 15 mil e os danos morais, para R$ 20 mil.

A justificativa para o corte nos lucros cessantes foi que o próprio motociclista só havia pedido R$ 15 mil ao ajuizar a ação. Por isso, o valor da condenação era extra petita (além do que foi pedido), o que viola os artigos 141 e 492 do Código de Processo Civil.

Já os danos morais caíram porque, segundo os magistrados, o valor de R$ 20 mil já bastava para punir e orientar o motorista e, ao mesmo tempo, compensar o motociclista “sem propiciar enriquecimento” para a vítima.

Enriquecimento sem causa

É recorrente nos tribunais a prática de restringir indenizações para evitar o enriquecimento sem causa da parte vencedora, como previsto no artigo 884 do Código Civil. Segundo a lei, “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”.

“Existe em parte do Judiciário a mentalidade de que você não pode conceder uma indenização muito alta para uma família pobre. Que eles vão achar aquele negócio bom, vão achar que foi vantajoso”, critica o advogado João Capanema Tancredo, especialista na área de Responsabilidade Civil.

Tancredo costuma representar cidadãos em ações que envolvem serviços públicos, como transporte e energia, e também em casos violentos, como pedidos de reparação a famílias de mortos em ações policiais. Segundo ele, é comum que as indenizações sejam fixadas “em montantes irrisórios” em comparação aos danos causados.

A revista eletrônica Consultor Jurídico localizou, só entre casos julgados em setembro, mais de 20 acórdãos em que o TJ-SP usou o argumento do enriquecimento indevido para limitar o valor das compensações pagas a motociclistas feridos ou aos familiares, nos casos com morte.

O procedimento é comum não apenas em ações civis, em que a indenização é cobrada da parte envolvida no acidente, mas também em casos de Direito Público e Administrativo. Nesses processos, os litigantes são entes como prefeituras, companhias de energia e concessionárias de rodovias, por terem relação com a causa do acidente — cabos de luz soltos e buracos na pista, por exemplo.

A tese contra o enriquecimento indevido é aplicada mesmo em casos de danos extensos, como mostram os exemplos abaixo:

Processo 0073009-09.2011.8.26.0002 (10/9/2025) — Motociclista trafegava pelo bairro Morumbi, em São Paulo, quando se chocou com um carro que fez manobra irregular. Ele sofreu lesões neurológicas, ficou “internado por longo tempo” e foi aposentado por invalidez. O juízo fixou indenização de R$ 200 mil por danos morais, devido às sequelas permanentes, e R$ 70 mil para a mãe do motociclista, que abandonou o emprego para cuidar dele. Em segunda instância, porém, os valores caíram para R$ 100 mil e R$ 50 mil, com base em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do próprio TJ-SP. Caso foi decidido mais de 15 anos depois do acidente, em fevereiro de 2010 (clique aqui para ler o acórdão).

Processo 2133280-62.2025.8.26.0000 (28/4/2025) — Motociclista prendeu o guidão da moto em um cabo de luz pendurado em um poste no bairro Butantã, em São Paulo. Ele teve fratura no joelho esquerdo e outras lesões. A concessionária de energia, que era ré, alegou que aquele cabo estava inativo e não era parte da rede elétrica sob sua responsabilidade, mas o juízo viu omissão na manutenção e determinou indenização de R$ 15 mil por danos morais, mas a quantia baixou para R$ 10 mil em segundo grau. A justificativa foi a necessidade de buscar um valor moderado, equitativo e compatível, “sem que cause a penúria do primeiro (a concessionária) e o enriquecimento do segundo (o motociclista)” (clique aqui para ler o acórdão).

Processo 1036549-68.2023.8.26.0007 (8/9/2025) — Motociclista voltava do trabalho em Itaquera, Zona Leste de São Paulo, quando bateu de frente com um caminhão de lixo que estava na contramão. Ele foi socorrido e ficou internado por 45 dias, mas não resistiu aos ferimentos e morreu em fevereiro de 2023, aos 37 anos. O juízo condenou a empresa de limpeza e a Prefeitura de São Paulo a pagarem R$ 250 mil para a viúva e a mesma quantia para cada um dos dos dois filhos. Mas os valores caíram para R$ 100 mil cada, em segunda instância, “para se adequar aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade”, segundo os desembargadores (clique aqui para ler o acórdão).

Violência na pista

A precariedade da segurança dos motociclistas tem sido debatida no âmbito das ações que discutem, no Supremo Tribunal Federal, qual é o vínculo trabalhista entre entregadores e motoristas de aplicativo.

Representantes de sindicatos e entes públicos afirmaram, em sustentações orais no julgamento, que os motociclistas formam uma categoria profissional que opera sob risco permanente, com alta exposição a acidentes graves, e que é preciso estabelecer regras mais claras para a responsabilização das plataformas nesses casos.

Os participantes destacaram que os acidentes resultantes do trabalho de entregador costumam ficar às custas do Sistema Único de Saúde (SUS) e da assistência social, visto que só um terço deles contribui para a Previdência Social.

Tanto os sindicatos quanto a Advocacia-Geral da União defenderam, no julgamento, a necessidade de garantir a capacitação profissional dos trabalhadores, para desenvolver habilidades técnicas e de segurança no trânsito. Eles pediram também que as plataformas sejam obrigadas a oferecer um seguro eficiente em caso de acidentes.

Responsabilidade civil

ConJur fez uma análise conjunta de um total de 200 acórdãos recentes, do TJ-SP e do Tribunal Superior do Trabalho, para identificar como têm sido julgados os pedidos de reparação e o que determina a vitória ou a derrota dos motociclistas.

Em processos ajuizados contra pessoas físicas, a responsabilidade do motorista é subjetiva. Ou seja, não se configura automaticamente e precisa ser provada no caso concreto. O critério que costuma decidir os julgamentos é a dinâmica do acidente, para determinar de quem foi a culpa, conforme as normas do Código de Trânsito Brasileiro (CTB):

Vitória do motociclista: Os motoristas são levados a pagar indenização quando fazem uma curva perigosa e obstruem a passagem da moto (artigos 34 e 38 do CTB); quando ignoram a placa de “Pare” em um cruzamento (artigo 44 do CTB); ou quando colidem na traseira da moto (artigo 29, inciso II, do CTB). Os tribunais também levam em conta o dever de segurança e cuidado do veículo de maior porte, conforme o artigo 29, parágrafo 2º, do CTB.

Derrota do motociclista: As indenizações são negadas, mesmo em casos de danos extensos ao motociclista, se ficar demonstrado que ele teve culpa exclusiva no acidente. Isso ocorre em caso de ultrapassagem proibida (artigo 33 do CTB) ou tráfego imprudente no “corredor” entre os carros, o que configura violação à distância de segurança (artigo 29, inciso II, do CTB).

Já as prestadoras de serviços públicos, como concessionárias de rodovias e operadoras de telefone e internet, respondem de forma objetiva (já presumida), por falha na prestação de serviço. Nesses casos, inverte-se o ônus da prova e a empresa só se livra da punição se comprovar a ausência de nexo causal entre a falha e o acidente:

Vitória do motociclista: Os tribunais determinam indenização quando fica demonstrado que um fator externo provocou o acidente. Isso vai desde buracos no asfalto e cabos soltos na via, que são os casos mais comuns, até choques com animais na estrada.

Derrota do motociclista: Se a empresa conseguir provar que a queda do motociclista não foi causada pela falha alegada, ou que a culpa foi de terceiros (um caminhão que fechou o motociclista na rodovia, por exemplo), a responsabilidade é afastada.